Como o milho vem contribuindo para ampliar a produção de energia sem comprometer a segurança alimentar?
De acordo com estimativas da International Energy Agency (IEA), a demanda global por biocombustíveis deve ultrapassar 215 bilhões de litros por ano em 2030, 19% superior aos 180 bilhões de litros consumidos em 2024.
Em cenários de emissões líquidas zero até 2050, essa demanda pode aumentar significativamente, impulsionada principalmente pelas metas de descarbonização do setor de transporte, nos modais rodoviário, aéreo e marítimo. Segundo a OECD-FAO, da mesma forma, a demanda por alimento deve crescer 13% até 2032, principalmente devido ao crescimento populacional dos territórios africanos e asiáticos. Nesse contexto, há o extenso debate comumente denominado “food versus fuel”, em que estudos questionam se a produção de biocombustíveis pode comprometer ou não a oferta de alimentos e seus preços (para mais detalhes, ler “A produção de biocombustíveis ameaça a segurança alimentar?”).
O etanol de milho é um dos combustíveis questionados no âmbito desse debate. Na primeira década dos anos 2000, com o crescimento da produção e demanda por biocombustíveis, alguns estudos foram publicados indicando a existência de evidências que destacassem problemas relacionados à competição com a produção de alimentos, devido ao aumento da produção norte-americana de etanol de milho[1]. No entanto, atualmente no contexto brasileiro, a combinação de tecnologia, aumento de produtividade e a utilização de múltiplas safras possibilitam sinergias entre biocombustíveis e segurança alimentar, promovendo o uso mais eficiente da terra e aumentando a oferta de alimentos. O cultivo de matérias-primas em sistemas de sucessão vem desafiando a ideia simplista de competição pelo uso da terra entre alimentos e biocombustíveis.
Dados indicam que, apesar do aumento da demanda por milho para a produção de etanol no Brasil, não houve redução da quantidade destinada à alimentação humana e animal nem aumento significativo do preço do milho nos mercados local e global. Entre 2017/18 e 2023/24, enquanto a demanda de milho para a produção de etanol aumentou em 13 milhões de toneladas, a produção de milho destinada para ração animal expandiu em 9,5 milhões de toneladas, o uso para alimentos, sementes e uso industrial aumentou aproximadamente 4,5 milhões de toneladas e a exportação em 20 milhões de toneladas. Ao longo da série histórica observa-se que o milho foi destinado majoritariamente para rações, em seguida para exportações.
Destinação do milho produzido no Brasil
Em milhões toneladas (2017 – 2025)
Produção e preço de milho
Produção total no Brasil, destinação de uso para etanol no Brasil e preços do milho no Mato Grosso e no mercado internacional (2017 – 2024)
De acordo com a definição da FAO (1996, 2006), o termo segurança alimentar pode ser definido com base em quatro pilares: (1) disponibilidade de alimentos, (2) acesso físico, econômico e sociocultural aos alimentos, (3) utilização adequada dos alimentos e (4) a estabilidade e sustentabilidade ao longo do tempo para todos os agentes. A literatura a respeito dos impactos da produção de bioenergia na segurança alimentar está relacionada principalmente aos pilares (1), (2) e (4). Grande parte dos estudos realizados até o momento avaliam tipos de biocombustíveis genéricos e em nível mundial, desconsiderando as especificidades regionais, sem dar devida atenção a aspectos produtivos, tecnologias específicas, sistemas e cadeias de produção particulares, como a ocorrência de múltiplas safras no Brasil, por exemplo.
O impacto na segurança alimentar também deve levar em consideração a forma como a renda e o consumo das famílias de baixa renda serão afetados pelo aumento da produção de biocombustível e como os consumidores mudarão as suas escolhas entre alternativas de produtos agrícolas e alimentar. A entrada da indústria de etanol de milho de segunda safra no Brasil impactou positivamente a renda, consumo e bem-estar das famílias, dando melhores condições de acesso aos alimentos. Esse foi um dos resultados do estudo publicado por Gurgel et al. (2024), que identificou mudanças positivas na renda familiar na região Centro-Oeste após a entrada das indústrias de etanol de milho na região. Esse resultado é explicado pela maior geração de empregos e demanda por serviços locais, que impulsionaram o aumento do consumo de alimentos e o bem-estar das famílias pobres dessa região.
O estudo de Gurgel et al. (2024) mostra a importância da produção do etanol de milho de segunda safra, como propulsor de desenvolvimento local, crescimento econômico, aumento de renda e consumo para as diferentes classes sociais e novos empregos. Adicionalmente, o biocombustível pode reduzir as emissões de GEE em comparação com os combustíveis fósseis e oferecer alternativas energéticas renováveis, contribuindo para a transição para uma economia de baixo carbono. Além disso, pode apoiar a segurança alimentar e energética, desde que sua produção seja realizada de maneira responsável, sem comprometer os ecossistemas e a disponibilidade de alimentos (para maiores detalhes, ler “Contribution of double-cropped maize ethanol in Brazil to sustainable development”, indicado nas referências).
Nota-se que apesar do aumento da demanda de milho para a produção de etanol nos últimos anos, o consumo representou apenas 12% da produção total na safra 2023/24. A quantidade de milho processado para a produção de etanol aumentou dez vezes em seis anos. Apesar do aumento de demanda, observa-se uma queda no preço recebido pelo produtor de milho no estado de MT desde 2021/22, seguindo a tendência de preços do mercado internacional.
O Brasil, como um dos maiores produtores e exportadores de commodities agrícolas do mundo, possui forte contribuição na oferta global de biocombustíveis e alimento, e capacidade de garantir essa expansão pautada em técnicas sustentáveis. Neste sentido, a implementação de técnicas de “baixo risco de mudança do uso da terra”, conhecidas também por “poupa-terra”, possibilitam maximizar a produção de biocombustíveis, sem a necessidade de expandir novas áreas agrícolas ou competir com a produção de alimentos (ler mais em “Efeito Poupa-Terra: produtividade é a chave para a sustentabilidade ambiental do agro brasileiro?”). O avanço tecnológico da produção, melhor gestão e práticas de manejo e ganhos de produtividade, tem possibilitado melhor uso da terra nos sistemas de produção, não havendo competição da produção de matérias-primas utilizadas para alimentos e biocombustíveis.
O clima favorável na região Centro-Oeste do país, principalmente no estado de Mato Grosso, permite que o cultivo de milho seja feito logo após a soja. Antes dos anos 1990, o milho no Brasil era produzido exclusivamente em safra única. Com a adoção da segunda safra, a cultura passou a ocupar áreas antes ociosas na entressafra da soja, tornando-se a principal forma de produção. Na safra 2023/24, o milho de segunda safra representou 78% da produção nacional, totalizando 90 milhões de toneladas.
Produção de milho no Brasil por safra
1ª, 2ª e 3ª safra, em milhões de toneladas
O Brasil tem potencial para expandir ainda mais o cultivo de milho segunda safra, considerando as áreas de soja subutilizadas durante os meses de entressafra podendo dobrar o volume no futuro. Estudo da EPE (2024) estimou em 16,6 milhões de hectares (Mha) o potencial de expansão do cultivo de milho de segunda safra em áreas de soja já consolidadas e com condições climáticas adequadas e favoráveis, com uma capacidade de produção de 38 bilhões de litros adicionais de etanol por ano. Vinculado a essa produção também existe a geração adicional dos coprodutos, principalmente Dried Distillers Grains (DDG), destinado para alimentação animal, que substitui parte dos grãos que antes eram utilizados para este fim. Dessa forma, devido à entrada de DDG no mercado e maior oferta de ração, há uma redução da demanda de soja e milho utilizados para alimentação animal e, consequentemente redução de preço da ração animal, além da menor necessidade de área para a produção desses grãos. Adicionalmente, o DDG é uma fonte de alto valor de proteína que permite maior eficiência no tempo de engorda do rebanho, contribuindo para a intensificação da pecuária.
Adicionalmente, estudos recentes da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) estimaram que existem 110 Mha de áreas de pastagens no Brasil com nível moderado ou severo de degradação, sendo 28 a 36 milhões de hectares aptas para conversão agrícola (SILVA, 2024; BOLFE et al., 2024). Outro ponto importante que merece ser mencionado é o ganho de produtividade das principais culturas energéticas. Embora os ganhos de produtividade estejam relativamente estáveis nas últimas safras, a soja, milho e cana-de-açúcar ainda não atingiram seus limites teóricos de produtividades, próximos àqueles encontrados em experimentos com fatores de produção controlados.
Na safra 2023/24, a produtividade do milho de segunda safra no estado de Mato Grosso alcançou 6,9 toneladas por hectare (t/ha) e a soja 3,2 t/ha. Assim, em 2023/24, 1 hectare do sistema de sucessão soja e milho produziu 10,1 toneladas, ou seja, 218% mais do que uma área de soja solteira. O sistema soja-milho contribui para aumentar a produção de grãos em uma mesma área, otimiza o uso da terra e aumenta a oferta de insumos agrícolas para diversos usos, incluindo a produção de etanol, alimentos e nutrição animal.
De forma resumida, o sistema produtivo do etanol de milho brasileiro, baseado em múltiplas safras, não vem competindo por terra com a produção de alimentos, uma vez que é plantado em sistema de sucessão com uma cultura de primeira safra, permitindo a integração da produção de energia e alimentos na mesma unidade produtiva. Além disso, o sistema de produção brasileiro contribui para o enfrentamento da mudança climática e redução das emissões de CO2, sendo um sistema integrado de produção de alimento e energia, capaz de apoiar a segurança alimentar e energética
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